quarta-feira, 16 de agosto de 2017

CONFISSÕES DE ROUSSEAU - Por Jean Jacques Rousseau



                Depois de longas deliberações para seguir as minhas disposições naturais, decidiram-se enfim por aquilo para que eu menos as tinha, e puseram-me em casa de M. Masserou, tabelião da cidade, para aprender ali, como dizia M. Bernard, o útil cargo de grapignau.  Esta denominação desagradava-me soberanamente; a esperança de ganhar muitos escudos por uma vida ignóbil lisonjeava pouco o meu gênio altivo; a ocupação parecia-me massadora, insuportável; a assiduidade, a sujeição acabaram por me desacorçoar, e nunca entrava no cartório senão com um horror, que aumentava de dia para dia. M. Masserou, por seu lado, pouco contente comigo, tratava-me com desprezo, censurando constantemente a minha indolência, a minha estupidez; repetindo-me todos os dias que meu tio lhe assegurara que eu sabia, que eu sabia!" quando afinal eu não sabia coisa nenhuma; que lhe tinha prometido um lindo rapaz, e que não lhe tinha dado senão um burro. Enfim fui despedido do cartório ignominiosamente, pela minha inépcia, e logo foi sentenciado pelos empregados de M. Masserou que eu não servia senão para pegar uma lima. 
                Determinada assim a minha situação, fui feito aprendiz, não, todavia, num relojoeiro, mas num gravador. Os desdéns do tabelião tinham-me humilhado extremamente, e obedeci sem murmurar. O meu patrão, M. Ducommun, era um homem novo, grosseiro e violento, e conseguiu em pouco tempo empanar todo o brilho da minha infância, embrutecer o meu caráter amante e vivo, e reduzir-me, tanto pelo espírito como pela fortuna ao meu verdadeiro estado de aprendiz. O meu latim, as minhas antiguidades, tudo foi esquecido; não me lembrava mesmo que tivesse havido romanos no mundo. Meu pai, quando o ia ver, já não encontrava em mim o seu ídolo; já não era para as damas o gentil João-Jacques, e compreendia tão perfeitamente que M. e Mademoiselle Lambercier não poderiam já reconhecer em mim o seu antigo discípulo, que nunca me apresentei diante deles, e não mais os vi. Os gostos mais vis, a mais baixa maroteira, sucederam aos meus amáveis divertimentos, sem que estes me deixassem mesmo a menor lembrança. Era preciso que, apesar da educação mais honesta, eu tivesse propensão para degenerar; porque isto efetuou-se  muito rapidamente, sem a menor relutância, e nunca César tão precoce sew tornou tão prontamente Laridon. O ofício em si não me desagradava; tinha um gosto vivo pelo desenho, o buril entretinha-me bastante; e, como o talento do gravador para a relojoaria é muito limitado, eu tinha esperanças de atingir a perfeição. Tê-lo-ia conseguido talvez se a brutalidade do meu patrão e o constrangimento excessivo não me tivessem desgostado do trabalho.  Roubava-lhe o meu tempo para empregar em ocupações do mesmo gênero, mas que tinham para mim os atrativos da liberdade. Gravava uma espécie de medalhas para nos servirem a mim e aos meus camaradas, de ordem de cavalaria.  Meu patrão surpreendeu-me neste trabalho de contrabando e deu-me uma tareia mestra, dizendo que eu me adestrava a fazer moeda falsa, porque as nossas medalhas tinham as armas da República. Podia bem jurar que não fazia nenhuma ideia da moeda falsa e muito pouco da verdadeira. Sabia melhor como se faziam os ases romanos do que as nossas peças de três sous. 
                 A tirania do meu patrão acabou por me tornar insuportável o trabalho, que eu viria a amar, e por me dar vícios, que teria detestado, tais como a mentira, a preguiça e o roubo. Nada me fez compreender melhor a diferença que há entre dependência filial e a escravatura servil como a recordação das transformações que em mim produziu esta época. 
                 Naturalmente tímido e vergonhoso, o defeito a que tinha mais aversão era o desaforo; mas tinha gozado duma liberdade honesta que até ali apenas se restringira por graus, e que se dissipou completamente. Era atrevido com meu pai, livre com H. Lambercier, discreto com meu tio; tornei-me medroso com meu patrão, e desde então fui uma criança perdida. Acostumado a uma igualdade perfeita na maneira de viver com os seus superiores a não conhecer um prazer que não estivesse ao meu alcance,  a não ver uma iguaria em que não tivesse a minha parte, a não ter um desejo que não demonstrasse, a por enfim nos lábios tudo o que me ia no coração, calcule-se o que foi feito de mim e numa casa em que não ousava abrir a boca, em que tinha de levantar-me da mesa a meio da refeição e sair do quarto logo que lá não tivesse o que fazer; em que, preso continuamente ao meu trabalho, só via objetos de gozo para os outros e de privações para mim; em que a imagem da liberdade de meu patrão e dos oficiais aumentava o peso da minha sujeição; em que, nas disputas sobre o que melhor sabia, não ousava abrir a boca; em que enfim, tudo o que via se tornava, para meu coração, um objeto de cobiça, unicamente porque era privado de tudo. Adeus desafogo e alegria, ditos felizes que outrora nos meus delitos, me tinham feito escapar tantas vezes ao castigo.  Não posso deixar de rir ao lembrar-me que uma noite, em casa de meu pai, tendo sido condenado por uma travessura qualquer a ir-me deitar sem ceia e passando pela cozinha com meu triste bocado de pão, vi e achei o assado que girava no espeto. Estavam em volta do fogo; foi preciso, ao passar, cumprimentar toda aquela gente. Acabada a roda, pondo o rabo do olho no assado que tinha tão boa cara e que cheirava tão bem, não pude deixar de lhe fazer também a minha reverência e de lhe dizer num tom lastimoso: "Adeus assado!" Acharam tanta graça a este chiste de ingenuidade que me deixaram ficar para cear.  Talvez tivesse tido a mesma felicidade com meu patrão, mas estou certo de que não teria ocorrido ou que não me atreveria a dizê-lo. 
                  Eis como aprendi a cobiçar em silêncio, a ocultar-me, a dissimular, a medir, e a roubar enfim, precisamente que até ali não me tinha ocorrido, e de que não pude desde então curar-me bem. A cobiça e a impotência levam sempre a isso. Eis porque todos os lacaios são ladrões e porque todos os aprendizes o devem ser; mas num estado igual e tranquilo, em que tudo o que vêem está ao seu alcance, estes últimos perdem com o tempo essa vergonhosa inclinação.  Não tenho tido a mesma vantagem , não pude tirar o mesmo proveito. 
                 São quase sempre bons sentimentos mal dirigidos que conduzem as crianças para o mal. Apesar das privações e das tentações contínuas, havia já um ano que estava em casa de meu patrão e nunca me resolvera tirar fosse o que fosse, nem mesmo qualquer coisa para comer. O meu primeiro roubo foi por uma questão de condescendência, mas abriu a porta a outros que não tinham um fim tão louvável. 
                 Havia em casa de meu patrão um oficial chamado Verrat, cuja casa, na vizinhança,  tinha um jardim bastante afastado, que dava belíssimos espargos. Apeteceu ao Verrat, que não tinha muito dinheiro, roubar as primícias dos espargos a sua mãe. e vendê-los para fazer uns bons almoços. Como não queria expor-se a si próprio, e não fosse muito ágil, escolheu-me para esta tarefa. Depois de algumas agradáveis palavras preliminares, que me atraíram tanto mais facilmente que não lhes conhecia o fim, propor-me como ideia que lhe tivesse ocorrido naquele instante. Hesitei muito, ele insistiu. Nunca pude resistir às carícias; rendi-me. Ia todas as manhãs ceifar os mais belos espargos; levava-os ao Molard, onde alguma boa mulher, que percebia que acabara de roubar, me propunha comprar mais em conta. Cheio de medo, aceitava o que ela queria me pagar; levava-o a M. Verrat. Fazia-se logo um almoço com coisas que ia comprar, almoço que ele repartia com outro companheiro; porque eu, muito contente de ter alguns sobejos, não lhe tocava sequer no vinho. 
                 Este pequeno manejo durou alguns dias, sem mesmo me acudir à lembrança a ideia de roubar o ladrão e de abater qualquer coisa do produto dos espargos. Executava a minha ladroeira com a maior fidelidade; o meu único fim era agradar a quem me obrigava a praticá-la.  Contudo, se fosse surpreendido, que de pancadas, que de injúrias, que tratamentos cruéis não teria suportado, enquanto que o miserável, desmentindo-me, seria acreditado sob a sua palavra, e eu duplamente punido por ter ousado acusá-lo, visto que ele era oficial e eu apenas aprendiz! Eis como em tudo, o mais culpado se salva à custa do fraco inocente. 
                 Soube assim que roubar não era tão terrível como havia julgado; e tirei logo tão bom partido da minha ciência que coisa alguma que estivesse ao meu alcance estava em segurança desde o momento que a cobiçasse. Não era positivamente mal alimentado em casa do meu patrão, e a sobriedade não me custava senão por a ver observar tão mal.
                 O costume de fazer levantar da mesa as crianças quando se serve o que as tenta mais, parece-me muito apropriado para as tornar tão gulosas como gatunas. Tornei-me, em pouco tempo, uma e outra coisa, e geralmente saia-me bem, mas por vezes bastante mal quando era surpreendido. 
                 Uma recordação que me fez tremer ainda e rir ao mesmo tempo é a de um assalto às maçãs que me custou caro. Estas maçãs estavam no  fundo de uma despensa que, por uma gelosia elevada recebia a luz da cozinha. Um dia em que eu estava só em casa, subi à arca do pão para ver o jardim das borboletas  esse precioso fruto de que não podia me aproximar. Fui biscar o espeto para ver se podia apanhá-las; era muito curto. Acrescentei-lhe um outro mais pequeno que servia para a caça miúda, porque meu patrão gostava de caça. Espreitei diversas vezes sem resultado; enfim, senti com entusiasmo que trazia uma maçã. Puxei com muito cuidado; já a maçã tocava na gelosia, estava quase a agarrá-la. Quem dirá a minha dor? A maçã era muito volumosa, não pode passar pelo buraco. De que invenções eu pus então em prática para a tirar! Tive de ir buscar suportes para que o espeto pudesse fazer o seu papel, uma faca bastante comprida para partir a maçã, uma ripa para a sustentar. À força de jeito e de tempo consegui parti-la, pensando eu tirar em seguida os bocados, um de cada vez;  mas, assim que se separaram caíram ambas na despensa. Leitor piedoso, partilhai da minha aflição! Não perdi a coragem, mas tinha perdido muito tempo, tinha medo de ser surpreendido; adiei para o dia seguinte uma tentativa mais feliz, e tão tranquilamente como se nada tivesse feito, pus-me a trabalhar sem pensar nas duas testemunhas indiscretas que depunham contra mim na despensa. 
                 No dia seguinte, achando boa a ocasião, tento uma nova experiência. Subo ao meu cavalete, estudo o espeto, adapto-o; estava quase a picar... Infelizmente o dragão não dormia; de repente a porta da despensa abre-se e o patrão sai, cruza os braços, olha-me, e diz-me:
                 - Coragem! ... A pena cai-me das mãos. 
                 Em pouco tempo, à força de suportar meus tratos, tornei-me menos sensível; pareceram-me por fim uma espécie de compensação do roubo, que me dava direito para continuar. Em vez de voltar os olhos para trás e de reparar no castigo, levava-o para a frente  e meditava na vingança. Achava eu que espancarem-me por ser ladrão, era autorizar-me a sê-lo. Pensava que roubar e apanhar pancada eram coisas inseparáveis e constituíam, de corto modo um estado, e que cumprindo a parte deste estado que dependia de mim, podia deixar o cuidado da outra ao meu patrão. Com esta ideia pus-me a roubar com mais tranquilidade que anteriormente. Dizia comigo: 
                  - Que me acontecerá por fim? Apanharei pancadas? Seja; nasci para isso. 
                  Eu gosto de comer, sem ser ávido; sou sensual, e não glutão; muitos outros gostos me afastam deste. Não me ocupo da minha boca quando o meu coração está desocupado, e isto acontece-me tão poucas vezes na minha vida que quase não tenho tempo para pensar nos bons bocados. Eis porque não limitei por muito tempo os meus roubos aos comestíveis, alarguei-os imediatamente a tudo que me tentava; e, se não me tornei um ladrão em forma,foi porque nunca o dinheiro me tentou muito. No gabinete comum, o meu patrão tinha um outro gabinete à parte, que fechava à chave; achei meio de abrir e fechar a porta sem que ele suspeitasse. Aproveitava-me ali das suas boas ferramentas, dos seus melhores desenhos, das suas estampas, de tudo o que me fazia inveja e que ele costumava afastar de mim. No fundo, estes roubos eram bem inocentes, porque eram feitos apenas para serem empregados ao seu serviço; mas eu entusiasmava-me por ter estas bagatelas em meu poder; julgava roubar o talento com as suas produções. De resto, havia nalgumas caixas, lâminas de ouro e de prata, pequenas jóias, moedas de valor, dinheiro. Quando tinha quatro ou cinco sous na algibeira, já era muito; no entanto, longe de tocar em qualquer dinheiro, não me lembro mesmo de lhe ter deitado nunca um olhar de cobiça; via-o com mais horror que prazer. Creio bem que este horror ao roubo do dinheiro me vinha, em grande parte, da educação. Acresciam a isso ideias secretas de infâmia, de prisão, de castigo, de força, que me teriam feito tremer se tivesse sido tentado; enquanto que as minhas habilidades não me pareciam senão travessuras e, com efeito, não eram outra coisa.  Tudo isso não podia ter outra consequência do que ser espancado a valer por um ano, e de antemão dispunha-me para isso.  
                  Mas, uma vez ainda, nem mesmo cobiçava o bastante para ter necessidade de me abster; não sentia que tivesse alguma coisa que combater em mim. Uma única folha de papel de desenho tentava-me mais que o dinheiro  para pagar uma resma. Esta extravagância é uma das singularidades do meu caráter; teve tanta influência sobre a minha conduta que é útil explicá-la.  
                  Tenho paixões violentíssimas, e enquanto elas me agitam, nada iguala a minha impetuosidade; não conheço nem prudência, nem respeito, nem medo, nem decoro; sou cínico, atrevido, violento, intrépido; não há vergonha que me detenha, nem perigo que me meta medo; à exceção do único objeto que me ocupa, o universo não é nada para mim. 
                 Mas tudo isto não dura senão um momento, e o momento que segue lança-me no aniquilamento. Na serenidade, porém, sou a própria indolência e a própria timidez; tudo me assusta, tudo me desanima; uma mosca voando, mete-me medo; uma palavra que tenha a dizer , um gesto que tenha a fazer, aterra a minha preguiça, o temor e a vergonha subjugam-me de tal forma que desejaria eclipsar-me aos olhos de todos os mortais. Se é preciso proceder, não sei o que hei de fazer; se é preciso falar, não sei oque hei de dizer; se me fitam fico todo atrapalhado. Quando me apaixono, encontro por vezes, o que tenho a dizer; mas nas conversas ordinárias, não encontro nada, absolutamente nada; só por isso me é insuportável ser obrigado a falar.   
                  Ajuntai a isto que nenhuma dos meus gostos dominantes consiste em coisas que se compram. Não preciso senão de prazeres puros, e o dinheiro envenena-os a todos. Gosto, por exemplo, dos da mesa; mas, não podendo sofrer nem o constrangimento da boa sociedade nem a crápula da taberna, não posso saborear senão com um amigo; porque só não me é possível; a minha imaginação ocupa-se então doutra coisa e não tenho gosto para comer. Se o meu sangue excitado me pede mulheres, o meu coração agitado pede-me ainda mais amor. Mulheres a preço de dinheiro perdiam para mim todos os seus encantos; duvido mesmo que seria capaz de utilizar-me delas. Dá-se isso com todos os prazeres ao meu alcance; se não são gratuitos, acho-os insípidos.  Os únicos bens que amo são aqueles que só são do primeiro que os sabe gozar. Nunca o dinheiro me pareceu uma coisa tão preciosa como o acham. Muito mais, ele nunca me pareceu muito cômodo; só por si não serve para nada, é preciso transformá-lo para gozar dele; é preciso comprar, regatear, ser comido muitas vezes, pagar bem, ser mal servido. Queria uma coisa boa na sua qualidade; com o meu dinheiro tenho a certeza de obtê-la má. Compro caro um ovo fresco, é velho; um bom fruto, é verde; uma rapariga, esta estragada. Gosto de bom vinho, mas onde ir buscá-lo? A um vendedor de vinho? Faça eu o que fizer, ele há de me envenenar. Quero ser absolutamente bem servido? Que de cuidados, que de embaraços! ter amigos correspondentes, dar recados, escrever, ir, vir, esperar; e muitas vezes no fim de tudo ser ainda enganado. Que de apoquentações com o meu dinheiro! Temo-o mais do que gosto do bom vinho.                   Mil vezes, durante o meu aprendizado e depois disso, sai com o  desígnio de comprar qualquer guloseima. Aproximo-me de uma pastelaria, vejo mulheres ao balcão; parece-me já vê-las rir e troças entre si do pequeno guloso.  Passo em frente duma vendedora de fruta, olho umas peras com o rabo do olho, o seu perfume tenta-me; dois ou três mancebos que ali estão perto olham para mim; um homem que me conhece está diante da loja; vejo ao longe vir uma rapariga; não e a criada da casa? A minha vista curta faz-me mil ilusões. Tenho todos os que passam por pessoas do meu conhecimento; em toda a parte mi intimido, retido por algum obstáculo; o meu desejo cresce com a minha vergonha, e voltando enfim como parvo, devorado de cobiça, tenho na algibeira com que satisfazê-lo e não me tendo atrevido a comprar coisa alguma. 
                  Entraria nos mais simples detalhes se seguisse no emprego do meu dinheiro, quer por mim, quer por outros, o embaraço, a vergonha, a repugnância, os inconvenientes, os desgostos de toda a espécie, que experimentei sempre. À medida em que avanço na minha vida, o  leitor tomará conhecimento do meu gênio, sentirá tudo isso, sem que eu insista muito em dizê-lo. 
                  Compreendido isto, compreender-se-á sem dificuldade uma das minhas pretendidas contradições, a de aliar uma avareza quase sórdida com o maior desprezo pelo dinheiro. É um traste para mim tão pouco cômodo que não penso mesmo em desejá-lo e quando o tenho guardo-o muito tempo sem gastar, por não saber empregá-lo à minha vontade; mas quando se apresenta a ocasião cômoda e agradável, aproveito-a tão bem que a minha bolsa se esvazia antes de dar por isso. De resto, não procurem em mim o tic dos avarentos, o de gastar por ostentação; pelo contrário, gasto em segredo e por prazer; longe  de me envaidecer por gosto, escondo-me de que o vejam . Sinto tão bem que o dinheiro não é para meu uso que tenho quase vergonha de o ter, ainda mais de me servir dele. Se tivesse alguma vez um rendimento suficiente para viver comodamente, nunca me tentaria a ser avaro, estou certo disso; gastaria todo o meu rendimento sem procurar aumentá-lo; mas a minha situação precária traz-me amedrontado. Adoro a liberdade; odeio o constrangimento, o enfado, a sujeição. Enquanto dura o dinheiro que tenho na minha bolsa, ele assegura a minha independência, dispensa-me de procurar maneira de adquirir outra necessidade a que sempre tive horror; mas, com medo de ver acabar, amimo-o. O dinheiro que se possui é o instrumento da liberdade; aquele que se persegue é o da servidão. Eis porque forro bem e não desejo nada. 
                 O meu desinteresse não é então senão preguiça; o prazer de ter não vale o sacrifício de adquirir; e a minha dissipação não é ainda senão preguiça; quando se apresenta a ocasião de dispender agradavelmente, é aproveitá-la o melhor que se pode. Tento-me menos com o dinheiro que com as coisas, porque entre o dinheiro e a posse desejada há sempre um intermediária, enquanto que entre a coisa e a sua fruição já não há. Eu vejo a coisa, ela tenta-me; senão vejo senão o meio de adquirir, ela não tenta. fui pois ladrão, e sou-o ainda algumas vezes de bagatela que me tentam, e que me agrada mais tirar do que pedir; mas, pequeno ou grande, não me lembro de ter tirado em toda a minha vida um centavo a ninguém; exceto uma única vez, ainda não há quinze anos, que roubei sete libras e dez sous.  A aventura vale a pena ser contada, porque nela se encontra um concurso impagável de desaforo e de estupidez, que eu mesmo teria dificuldade em acreditar se dissesse respeito a outro. 
                  Era em paris. Passeava com M. de Francueil no Palais-Royal, às cinco horas. Ele puxa do relógio, olha-o, e diz-me: 
                 - Vamos à Opera. 
                 - Pois sim; vamos. 
                 - Compra dois bilhetes de anfiteatro, dá-me um e passa primeiro, com o outro; sigo-o, ele entra. Ao entrar, acho a porta impedida. Olho, vejo toda a gente de pé; julgo que facilmente poderia me perder no meio dessa multidão, ou pelo menos deixar supor a M.de Framcueil que me perdi nela. Saio, peço a minha contra-senha, depois o meu dinheiro, e vou embora, sem pensar que logo que chegasse à porta, toda a gente já estaria sentada, e que então M. de Francueil  veria claramente que já ali não estava. 
                 Como nunca, ação nenhuma foi mais afastada do meu gênio, por isso o noto, para mostrar que há momentos duma espécie de delírio em que não se devem julgar os homens  pelas suas ações. Não era precisamente roubar esse dinheiro; era roubar o seu emprego; mas era um roubo, mais, era uma infâmia. 
                 Não acabaria com estas minudências se quisesse seguir todos os caminhos por que passei, durante o meu aprendizado da sublimidade do heroísmo à baixeza dum patife. No entanto, tomando os vícios do meu estado, foi-me impossível tomar completamente os seus gostos. Aborrecia-me com os divertimentos dos meus camaradas; e quando o demasiado constrangimento me desgostou também do trabalho, aborreci-me de tudo. Isso tornou-me a dar o gosto da leitura, que a muito tempo havia perdido. Essas leituras, cujo tempo eu roubava ao trabalho, tornaram-se um novo crime que me trouxeram novos castigos. Esse gosto, irritado pela restrição, tornou-se paixão, e logo depois furor. La Tribu, famosa alugadora de livros, fornecia-me de toda espécie. Bons e maus, tudo passava; não escolhia; lia tudo com igual avidez. Lia na oficina, lia quando ia fazer os meus recados, lia na retrete, e ai me esquecia horas inteiras; a cabeça andava-me à roda com a leitura, não fazia senão ler. O meu patrão espiava-me, surpreendia-me, batia-me, tirava-me os livros. Quantos volumes não foram rasgados, queimados, lançados pelas janelas! quantas obra não ficaram troncadas na livraria de La Tribu! Quando já não tinha com que pagar, dei-lhe as minhas camisas, as minhas gravatas, o meu fato; os três sous que recebia todos os domingos, ia-lhos levar com toda a regularidade. 
                  Ai está então, podem dizer-me, como o dinheiro se tornou necessário. É verdade, mas isso foi quando a leitura me privou de toda a atividade. Todo entregue ao meu novo gosto, não fazia senão ler, já não roubava. É ainda esta uma das minhas qualidades características. No auge dum certo hábito, um nada de distrai, me muda, me seduz, enfim me apaixona, e então tudo é esquecido; já não penso senão no nosso objeto que me ocupa. O coração batia-me com impaciência de folhar o novo livro que tinha na algibeira; tirava-o do bolso logo que me via sozinho, e não mais pensava em esquadrinhar o gabinete do meu patrão. Custa-me até crer que tivesse roubado, mesmo que tivesse tido paixões mais dispendiosas... La Tribu fiava-me; as quantias que me fiava eram pequenas; e quando embolsava o meu livro, não pensava em mais nada. O dinheiro que me vinha naturalmente às mãos, passava do mesmo modo para as dessa mulher; e quando ela me importunava nada me estava mais à mão do que os meus objetos de uso. Roubar adiantado era providência de mais, e roubar para pagar não chegava a ser uma tentação. 
                   À força de disputas, de pancadas, de leituras secretas e mal escondidas, o gênio tornou-se-me taciturno, selvagem; a cabeça começava-me a desarranjar-se, e vivia como um verdadeiro lobisomem. No entanto, se o gosto não me preservou dos livros medíocres e insípidos, a minha boa sorte preservou-me dos livros obscenos e licenciosos; não que La Tribu, mulher a todos os respeitos muito complacente, escrupulizasse em me os emprestar; mas, para os fazer valer, falava-me neles com ar de mistério que me obrigava precisamente a recusá-los, tanto por repugnância como por vergonha; e o acaso secundou tão bem o meu gênio pudico que já tinha mais de trinta anos e ainda não tinha lançado os olhos sobre um desses perigosos livros que uma linda dama do bom tom acha incômodos, porque se não podem ler senão com uma única mão. 
                 Em menos dum ano esgotei a escassa livraria de La Tribu,  e então encontrei-me sem ocupação alguma para os meus ócios. Curado dos meus gostos de criança e de ladrão pela da leitura, e mesmo pelas minhas leituras, que, ainda que sem critério e muitas vezes más, me inspiravam, contudo, sentimentos mais nobres que os que a minha condição me tinha dado; aborrecido com tudo o que estava ao meu alcance, e sentindo muito longe de mim tudo o que poderia tentar, não via nada que pudesse deleitar o meu coração. 
                Os sentidos, excitados havia muitos, pediam-me um gozo cujo objeto nem sabia imaginar. Estava tão longe do verdadeiro como se não tivesse sexo; e, já púbere e sensível, pensava algumas vezes nos meus frenesis, mas não via nada além. Nesta estranha situação, a minha inquieta imaginação tomou um partido que me salvou de mim mesmo e me acalmou a sexualidade nascente; foi o de me alimentar das situações que me tinham interessado nas minhas leituras, lembrá-las, variá-las, combiná-las, aproximar-me delas de maneira que me tornasse uma das personagens que imaginava, que me visse sempre nas condições mais agradáveis para o meu gosto, enfim que o estado fictício que eu conseguia dar-me, me fizesse o meu estado real, com que estava tão descontente. Este amor dos objetos imaginários e esta felicidade de me ocupar deles, acabaram de me desgostar de tudo o que me rodeava, e determinaram esse gosto pela solidão que desde esse tempo nunca mais me deixou. Ver-se-á mais duma vez no seguimento, os estranhos efeitos desta disposição, na aparência tão misantropa e tão sombria, mas que vem na realidade dum coração muito afetuoso, muito amante, muito terno, que, por não encontrar existentes que se lhe assemelhem, é obrigado a alimentar-se de ficções. 


......


RELAÇÕES COM MADAME D'HOUDETOT 
                  A volta da primavera tinha redobrado o meu terno delírio, e nos meus transportes tinha composto para as últimas partes de Julia várias cartas que se ressente do estado de êxtase em que as escrevi. Posso citar entre outras a do Elyzeu e do passeio do lago, que se bem me lembro, estão no fim da quarta parte. Quem, lendo essas duas cartas não sinta o coração penetrar no enternecimento que mais ditou, deve fechar o livro; não foi feito para julgar coisas do sentimento. 
                 Precisamente nesta ocasião tive de Madame d'Houdetot uma segunda visita inesperada. Na ausência do seu marido, que era capitão da gendarmeria, e do seu amante que estava também ao serviço, ela tinha vindo para Eaubonne, no meio de Montmorency, onde alugara uma casa muito bonita. Foi dai que veio fazer ao Ermitage uma nova excursão.  Nessa viagem, vinha a cavalo vestida de homem. Ainda que pouco goste de ver essas mascaradas, encantei-me com o ar romanesco desta, e desta feita era realmente amor. Como ele foi o primeiro e o único de toda a minha vida, e que as suas consequências o tornarão para sempre memorável e terrível para minha memória, seja me permitindo entrar nalgumas minudências sobre este ponto. 
                 A condessa d'Houdetot aproximava-se dos trinta anos e não era formosa; a cara  tinha sinais de bexigas; a cor do seu rosto não era delicada; tinha a vista baixa e os olhos um pouco redondos; mas tinha o ar moço com tudo isso, e a sua fisionomia, ao mesmo tempo viva e suave, era acariciadora; tinha uma floresta de grandes cabelos negros, ondeados naturalmente, que lhe chegavam aos joelhos; a sua estatura era mimosa, e tinha em todos os movimentos desjeito e graça a um tempo. Tinha o espírito muito natural e muito agradável; a alegria, o estouvamento e a simplicidade casavam-se nela duma maneira feliz; abundava em chistes encantadores que não rebuscava, e que partiam algumas vezes contra sua vontade. Tinha vários talentos agradáveis, toava bem, fazia versos muito razoáveis. Seu caráter era angélico; a doçura de alma constituía-lhe o fundo; e exceto a pronúncia e a força, reunia todas as virtudes. Era sobretudo dum trato tão lhano, duma tal lealdade, que até os seus inimigos não tinham necessidade de se esconder dela. Entendia por seus inimigos aqueles ou antes aqueles que a odiavam; porque, quanto a ela, não tinha coração para odiar, e creio que esta conformidade contribuiu para me apaixonar por ela. Nas confidências da mais íntima amizade, nunca lhe ouvi dizer mal dos ausentes, nem mesmo de sua cunhada. Não podia nem disfarçar a ninguém o que pensava, nem tampouco constranger nenhum dos seus sentimentos; estou convencido de que falava do seu amante ao seu marido mesmo, como falava dele aos seus amigos, aos seus conhecidos e à toda gente afinal. Enfim o que prova sem réplica a pureza e a sinceridade da sua excelente índole, é que sendo sujeita às piores distrações e aos mais visíveis estouvamentos, escapavam-lhe  algumas vezes imprudentes para ela própria, mas nunca ofensivos para quem quer  que fosse.
              Tinham-na casado muito nova e contra a sua vontade, como se conde d'Houdetot. homem da melhor sociedade, bom militar, mas jogador, amigo de chicanas, muito pouco amável e que ela nunca amou. Encontrou em M. de Saint-Lambert todos os méritos de seu marido, com as qualidades mais agradáveis, espírito, virtudes, talentos. Se alguma coisa deve ser perdoada aos costumes do século, é sem dúvida um afeto que a sua duração purifica, que os seus efeitos honram e que apenas é cimentada por uma estima recíproca. 
               Era um pouco por gosto, como vim a pensar, mas muito para satisfazer  Saint-Lambert que me vinha visitar. Ele tinha-a exortado a isso, e tinha razão em crer que a amizade que começava a estabelecer-se entre nós tornaria essa sociedade agradável a todos três. Ela sabia que eu estava sabendo da sua ligação; e podendo falar-me dele sem acanhamento, era natural que se comprazesse comigo. Veio, ví-a; estava ébrio de amor sem objeto; essa embriaguez fascinou-me os olhos, esse objeto fixou-se nela, vi a minha Júlia em madame d'Houdetot, e em pouco tempo não vi mais do que madame d'Houdetot, mas revestida de toda a perfeição com que acabara de adornar o ídolo do meu coração. Para acabar de me endoidecer, falou-me de Saint-Lambert como amante apaixonada. Força contagiosa do amor!  ao ouvi-la, ao sentar-me ao pé dela, apoderava-se de mim um frêmito delicioso, que nunca experimentara ao ope de ninguém. Falava, eu sentia-me perturbado; pensava apenas interessar-me pelos seus sentimentos, quando os adquiria semelhantes; tragava a grandes sorvos a taça envenenada  da qual não sentia ainda senão a dor. Enfim, sem que eu desse por isso e sem que ela desse também, inspirou-me por ela tudo o que ela exprimia pelo seu amante. Ai! foi muito tarde, foi muito cruel, arder numa paixão não menos viva que desgraçada, por uma mulher cujo coração estava cheio dum outro amor.  
               Apesar das emoções extraordinárias que ao pé dela experimentava, não dei a princípio pelo que tinha sucedido; não foi senão depois da sua partida que, querendo pensar em Júlia, fiquei surpreendido por não poder pensar em ninguém senão em madama d'Houdetot. Então os meus olhos abriram-se; senti a minha desgraça, mas não calculei as suas consequências .
               Hesitei muito tempo sobre a maneira como procederia com ela, como se o amor verdadeiro deixasse razão bastante para seguir as deliberações. Não tinha ainda resolvido nada, quando voltou e veio  me encontrar desprevenido. A vergonha, companheira do mal, emudeceu-me, fez-me tremer diante dela; não me atrevi a abrir a boca nem a levantar os olhos; estava numa perturbação inexprimível, que era impossível que ela não visse. Tomei o partido de lha confessar, e de lhe deixar adivinhar a causa; era dizer-lhe bastante claramente. 
               Se eu fosse moço e gentil, e que depois madame d'Houdetot tivesse sido fraca, censuraria aqui o seu procedimento; mas não se deu nada disso; não posso senão aplaudi-la e admirá-la. O partido que ela tomou era igualmente o da generosidade e da prudência. Não podia afastar-se bruscamente de mim sem dizer a razão e Saint-Lambert, que fora quem tinha induzido avim ver-me; era expor dois amigos a uma ruptura,  e talvez a um escândalo que ela queria evitar. Tinha por mim estima e benevolência. Tinha piedade da minha loucura; sem a incitar, lamentando-a, e tratou de curar-me dela. Ela queria conservar ao amante e a si mesma uma amigo que estimava; não me falava de coisa alguma com mais prazer do que da íntima e doce sociedade que sociedade que poderíamos formar todos três, quando eu voltasse a ser razoável. Não se limitava sempre a estas exortações amigáveis, e não me poupava quando era preciso as censuras mais severas, que eu tinha bem merecido. 
                 Poupava-mas ainda menos; logo que me achei só, voltei a mim; estava mais calmo, depois de ter falado; o amor conhecido daquele que o inspira torna-se mais suportável. A força com que censurava o meu, devia-me ter curado, se isso fosse possível. Que poderosos motivos não chamei em meu auxílio para abafar!
                 Os meus costumes, os meus sentimentos, os meus princípios, a vergonha , a infidelidade, o crime, o abuso, duma confidência confiada ela pela amizade, o o ridículo enfim de me abrasar na minha idade da paixão mais extravagante por uma mulher, cujo coração preocupado, não podia nem corresponder-me, nem deixar alguma esperança; paixão, além disso. que longe de ter qualquer coisa a ganhar pela constância, se tornara menos suportável de dia para dia. 
                 Quem imaginava que esta última consideração, que devia juntar  peso a todas as outras, foi aquela que a iludiu? Que escrúpulo, pensei eu, posso ter duma loucura nociva a mim só? Sou aquele jovem cavaleiro, para quem madame d'Houdetot tenha medo de mim? Não se dirá, com os meus presunçosos, que o meu garbo, o meu ar, a minha elegância no vestir, vão seduzi-la? Ah! Pobre Jean Jacques, ama a tua vontade, com consciência tranquila, e não receies que os teus suspiros prejudiquem a Saint-Lambert. 
                 Viu-se que nunca fui presunçoso, mesmo na minha juventude. Esta maneira de pensar estava na minha maneira de ser, ela lisonjeava a minha paixão; foi o bastante para me entregar a ela sem reservas, e rir mesmo do impertinente escrúpulo que queria ter isto mais por vaidade do que por razão. Grande lição para as almas honestas, que o vício nunca ataca às claras, mas que acha meio de os surpreender, mascarando-se sempre com algum sofisma, e muitas vezes com alguma virtude. 
                 Culpado sem remorso, fui-o bem depressa sem media; e, por favor, vejam como a minha paixão segue as pisadas da minha índole para me arrastar enfim para o abismo; e para tornar afoito, levou essa humildade até à desconfiança. Madame d'Houdetot, sem deixar nunca de me chamar ao meu dever, à razão, sem nunca lisonjear nem um momento a minha loucura, tratava-me de resto com a doçura, e tomou para comigo o tom da amizade mais terna. Essa amizade ter-meia bastado, eu o pretexto, se tivesse crido sincera; mas, achando-a via demais para ser verdadeira, não fui eu encaixar na cabeça que o amor, tão pouco próprio da minha idade, do meu porte, me tinha tornado desprezível aos olhos de madame d'Houdetot; que essa jovem louca queria divertir-se comigo e com as minhas ternuras sediças; que tinha contado tudo Saint-Lambert, e que, tendo a indignação da minha infidelidade feito entrar o seu amante na sua ideia., ambos se entendiam para acabar de me fazer andar a cabeça à roda, e meter-me a ridículo? Essa estupidez que me tinha feito feito delirar aos vinte e seis anos ao pé de madame d'Houdetot de Larnage , que eu não conhecia, ter-me-ia sido razoável aos quarenta e cinco, ao pé de madame d'Houdetot, se eu não tivesse ignorado que ela  e seu amante eram demasiado honestos para gozarem tão bárbaro divertimento. 
                 Madame d'Houdetot continuava a fazer-me visitas que não tardei a pagar-lhe. Ela gostava de caminhadas e eu também; fazíamos longos passeios num pais encantado. Contente em amar e em ousá-lo dizer, a minha condição seria a mais doce possível se a minha loucura não tivesse destruído todo o seu encanto. Ela começou por não compreender nada ao dar pelo estúpido mau humor com que recebia as suas amabilidades; mas o meu coração, incapaz de saber ocultar alguma coisa do que nele se passa, não lhe deixou ignorar muito tempo as minhas suspeitas; quis rir delas; esse expediente não deu  resultado; o seu efeito seria transportes de raiva; mudou de tom. A sua compassiva doçura foi insensível; fez-me censuras que me penetraram; testemunhou-me pelos meus injustos temores, inquietações de que abusei. Exigi provas de que ela não troçava de mim. Viu que não havia outro meio de me tranquilizar. Tornei-me importuno; o lance era delicado. 
                 É espantoso, é único talvez que uma mulher, tendo chegado a vacilar, se tivesse saído tão bem. Não me recusou nada do que a mais terna amizade podia conceder. Não concedeu nada que pudesse torná-la infiel, e tive a humilhação de ver que o abrasamento com que os seus ligeiros favores inflamavam os meus sentidos, não produziu nunca nos seus a menor faulha. 
                 Disse algures que se não  deve conceder nada aos sentidos, quando se lhes quer recusar alguma coisa. Para conhecer quando esta máxima se desmentiu com madame d'Houdetot e quanta razão ela tinha em contar consigo própria, era preciso entrar nas minudências dos nossos longos e frequentes colóquios e segui-las em toda a sua vivacidade durante meses que passamos juntos numa intimidade, quase sem exemplo, entre dois amigos de sexo diferente, que se reduzem aos limites do qual não saímos nunca. Ah! se eu tardara tanto tempo em sentir o verdadeiro amor, como o meu coração e os meus sentidos lhe pagaram bem os juros! e quais são então os transportes que devem sentir ao pé dum ente amado, que nos ama, se mesmo um amor não correspondido pode inspirar amores assim!
                 Mas fiz mal em dizer um amor não correspondido; o meu era-o até certo ponto; era igual de ambos os lados, apesar de não ser recíproco. Estávamos ambos perdidos de amor; ela pelo seu amante, eu por ela; os nossos suspiros, as nossas deliciosas lágrimas confundiam-se. Ternos confidentes um do outro, os nossos sentimentos tinham tanta relação entre si que era impossível que eles não se confundissem de alguma maneira; e todavia, no meio dessa perigosa embriaguez, nunca ela se descuidou um momento, e eu protesto, eu juro que, se tentei algumas vezes, perturbado pelos meus sentidos, torná- , nunca o desejei verdadeiramente. A veemência da minha paixão continha-a por si mesma.  O dever das privações tinha exaltado a minha alma.  O esplendor de todas as virtudes adornava aos meus olhos o ídolo do meu coração; machucar-lhe a divina imagem teria sido aniquilá-la. Teria podido cometer o crime; foi cem vezes cometido no meu coração; mas aviltar a minha Sofia! Oh! isso era possível? Não, não, disse-lho cem vezes a ela mesma; se tivesse estado na minha mão o satisfazer-me, se tivesse por sua vontade posto à minha disposição, a não ser nalguns momentos de delírio, eu teria recusado ser feliz por esse preço. Amava-a demais para querer possuí-la. 
                  Vai quase uma légua de Ermitage a Eaubonne; nas minhas frequentes viagens , aconteceu-me algumas vezes dormir ali. Uma noite, depois de termos ceado tete a tete, fomos passear pelo jardim, por um luar lindíssimo. Ao fundo desse jardim havia uma mata de corte, por onde fomos procurar um lindo bosquezinho, ornado duma cascata que eu lhe tinha proposto, e que ela tinha feito executar.  Recordação imortal de inocência e de prazer! Foi nesse bosque que, sentado com ela , sobre um banco de relva, sob uma acácia carregadinha de flores, que encontrei, para exprimir as emoções do meu coração, uma linguagem verdadeiramente digna delas, foi a primeira e única vez da minha vida; mas foi sublime, se assim se pode chamar tudo o que o amor mais terno e mais ardente pode inspirar de amável e de sedutor. Que de lágrimas não derramei  sobre seus joelhos! quantas não lhe fiz derramar contra a sua vontade! Enfim, num impulso involuntário, exclamou: 
                  - Não, nunca houve homem mais amável; e nunca amante amou como vos! Mas o vosso amigo Saint-Lambert escuta-nos, e o meu coração não poderá amar duas vezes. 
                  Calei-me suspirando: abracei-a... que abraço! Mas foi tudo. 
                  Havia seis meses que ela vivia só, isto é, longe do seu amante e de seu marido; havia três que eu a via quase todos os dias... Tínhamos ceado tete a tete, estávamos sós num bosquezinho ao luar; e depois de duas horas da conversa mais viva e mais terna, ela saiu no meio da noite desse bosque e dos braços do seu amigo, tão intacta, tão pura de corpo e de coração como ali entrara. Leitor, pesai todas estas circunstâncias, não acrescentarei mais nada. 
                  E não vá imaginar que aqui os meus sentidos me deixaram tranquilo, como ao pé de Tereza e da mamãe. Já o disse, desta vez era amor, e o amor em toda a sua energia e com todos os seus furores. Não descreverei nem as agitações, nem os frêmitos, nem as palpitações, nem os movimentos convulsivos, nem os desfalecimentos que experimentava continuamente; poder-se-á julgar tudo isto pelo efeito que a sua imagem mesmo fazia sobre mim. Disse que era longe do Ermitage e Eaubonne; passava pelos outeiros d'Andilly, que são encantadores. Pensava no caminho naquela que ia ver, no acolhimento que me faria, no beijo que me esperava à chegada. Esse beijo único, esse beijo funesto v-me o sangue antes mesmo de o receber, a ponto tal que a cabeça se me turbava; cegava-me um deslumbramento; os joelhos tremiam-me de maneira que não podia sustentar-me em pé; era obrigado a parar, a sentar-me; toda a minha máquina estava em desarranjo inconcebível; estava prestes a esvair-me. Consciente do perigo, esforçava-me, ao partir, por me distrair e pensar em outra coisa. 
                  Ainda não tinha andado vinte passos e já as mesmas recordações e todos os acidentes que se lhes seguiam voltavam a assaltar-me, sem que me fosse possível livrar-me deles... 
                 Chegava a Eaubonne, fraco, exausto, estafado, mal me podendo ter em pé. Desde o momento em que a via, tudo era reparado; não sentia mais ao pé dela do que a importunidade de um vigor inesgotável e sempre inútil. Havia no caminho, à vista de Eaubonne, um socalco agradável, chamado o Monte Olimpo, para onde nos encaminhávamos algumas vezes, cada um do nosso lado. Era eu o primeiro a chegar; era feito  para esperar, mas como essa espera me custava! Para me distrair, tentava escrever, com o lápis, bilhetes que teria podido traçar com o mais puro do meu sangue; nunca consegui acabar um que se pudesse ler. Quando ela achava algum no nicho que tínhamos combinado, não podia ver nele outra coisa que não o estado verdadeiramente deplorável em que eu estivera ao escrevê-lo. Esse estado, e sobretudo a sua duração, durante três meses de irritação continua e de privação, fez-me cair numa prostração que me deu, que durou três longos anos, e acabou por me dar uma doença que levarei ou me levará ao túmulo. Tal foi o único prazer amoroso do homem mais inflamável, mas mais tímido ao mesmo tempo, que a natureza tem talvez produzido. Tais foram os últimos dias felizes que me foram contados sobre a terra. 

BIOGRAFIA DE JOÃO JACQUES ROUSSEAU


                João Jacques Rousseau, ilustre escritor e filósofo francês, nasceu em Genebra (Suíça), a 28 de Junho de 1712; morreu em Ermenonville, perto de Paris, a 2 de Julho de 1778. Era filho dum relojoeiro, que lhe deu a primeira educação. Foi empregado num tabelião, aprendiz gravador, lacaio da condessa de Vercellis, depois do conde de Gounon e por fim professor de música em Lausana. Em 1741 partiu para Paris, onde viveu com a melhor sociedade, tendo secretariado durante algum tempo o embaixador da França em Veneza. Foi em 1749 que publicou o seu primeiro trabalho literário, sobre uma questão proposta pela Academia de Dijon : Le progès des sciences et des arts a-t-il contibuè à corrompre ou à épurer les moueurs?  Em 1656 aceitou a oferta de Madame D'Epinay para ir viver em sua casa em Montmorency.  O amor que lhe despertou a cunhada dessa senhora inspirou-lhe o seu célebre romance La Nauvelle Heloise. Em 1762  saía a sua notável obra sobre educação, Emile, que foi condenada tanto em Genebra como em Paris, tendo por isso de se refugiar na Inglaterra, entrando novamente na França, onde foi viver com M. Girardin, em Ermenoville; a morte suprpreendeu-o dentro de seis semanas. Além das obras mencionadas, escreveu Le Contrat Social, 1762, obra fundamental; Narcisse, 1763; Discours sur l'origine et les fundaments de l'inégalité, 1755; Lettres de la montagne, 1764; Dictionnaire de musique, 1767; e Confessions, 1782 - 1790. A influência de Rousseau foi enorme, tanto na literatura, sobre os românticos de todos os países, como na filosofia (sobre Kant, por exemplo) e sobre a própria Revolução Francesa. 
Nicéas Romeo Zanchett